Foto Capa: Gabryella Dias
Na noite do último sábado (31/05), o samba renasceu com força ancestral em Itaquera. Durante a Feijoada no Circo Social, a Escola de Samba Dom Bosco apresentou oficialmente o enredo com o qual cruzará a Avenida em 2026. “Mariama, Mãe de todas as Raças, de todas as cores, Mãe de todos os cantos da terra” é mais que um tema: é um chamado de fé, luta, da voz negra se elevando em oração e resistência.
O lançamento que aconteceu no Circo Social, localizado na sede da Obra Social Dom Bosco. Também marcou o retorno de um filho que nunca deixou de pertencer a comunidade da agremiação: o carnavalesco Fábio Gouveia. A festa teve ainda apresentações marcantes como a do coletivo cultural Kizomba pra Preto, a Congada de Santa Efigênia, o Grupo Abayomi, a Velha Guarda da Dom Bosco e um show especial da Rosas de Ouro, com presença da presidente Angelina Basílio.
De volta ao posto de carnavalesco da agremiação, Fábio falou com a equipe do Sintonia de Bambas e compartilhou a emoção desse reencontro com a escola e, principalmente, com sua verdade como artista.
“A Dom Bosco nunca me proibiu de fazer qualquer tipo de enredo, mas no último ano resolvi ir por um caminho mais lúdico. Foi difícil, foi complexo. Eu me senti desrespeitado no sentido artístico. Eu sempre quero fazer mais e sempre cobram mais da gente. Eu sou preto, e o preto sempre tem que fazer duas vezes mais pra ser entendido. Fiz o que pude, mas saí chateado.”
Fábio revelou que, durante esse tempo fora, teve conversas com outras escolas — que acabaram não se concretizando. Foi então que, com a ajuda de amigos e da liderança acolhedora do Padre Rosalvino, iniciou-se um caminho de retorno para a Escola de Samba e para o Carnaval SP.
“O Xará me procurou e disse: ‘Você precisa conversar com o Padre’. Eu resisti. Mas depois de várias conversas para entender como foi o Carnaval 2025 e como seria os próximos anos, o Padre me perguntou: ‘Ainda cabe um pedacinho da Dom Bosco no seu coração?’. Eu respondi: ‘Padre, eu nunca fiquei apenas um ano em uma escola. Preciso construir minha história aqui’. E aqui estou. Estou pisando no meu chão, estou 100% na escola, e a escola se reestruturou para trabalhar com o Fábio e o Fábio para ela.”
Um enredo que canta a fé e a negritude

Arte Oficial do Enredo 2026
A Missa dos Quilombos, realizada em 1981 na Praça do Carmo em Recife (PE), foi um marco de fé e resistência. Celebrada por líderes progressistas da Igreja Católica, como Dom José Maria Pires, Dom Hélder Câmara e Dom Pedro Casaldáliga, teve participação de mais de oito mil pessoas — em um espaço simbólico, onde a cabeça de Zumbi dos Palmares foi exposta após sua execução.
Eternizada na voz de Milton Nascimento e na poesia do bispo Dom Hélder Câmara, a missa virou álbum e símbolo de um Brasil profundo, marcado pelas contradições sociais e pela espiritualidade do povo negro.
E nessa celebração, o Carnavalesco une religiosidade afro-brasileira e catolicismo como o enredo da Dom Bosco em 2026, Sempre guiado pela força de Mariama, uma invocação da Virgem Maria como mãe do povo negro.
“Estamos fazendo um enredo que vai falar da força de Mariama, do manifesto de Dom Hélder Câmara e da musicalidade da Missa dos Quilombos. Mariama é a guia que vai nos conduzir nessa jornada, celebrando o povo negro que samba na glória da igreja”, explicou Fábio Gouveia.
Um tema que é também poesia
Como em todo grande samba-enredo, as palavras que inspiram também emocionam. O poema de Dom Hélder Câmara — recitado durante a histórica missa de 1981 — é um grito por justiça, irmandade e paz que atravessa os tempos e agora ecoará no Anhembi durante o Carnaval SP 2026:
“Mariama”, por Dom Hélder Câmara
Mariama, Nossa Senhora, mãe de Cristo e Mãe dos homens!
Mariama, Mãe dos homens de todas as raças, de todas as cores, de todos os cantos da Terra.
Pede ao teu filho que esta festa não termine aqui, a marcha final vai ser linda de viver.
Mas é importante, Mariama, que a Igreja de teu Filho não fique em palavra, não fique em aplauso.
Não basta pedir perdão pelos erros de ontem.
É preciso acertar o passo de hoje sem ligar ao que disserem.
Claro que dirão, Mariama, que é política, que é subversão.
É Evangelho de Cristo, Mariama.
Claro que seremos intolerados.
Mariama, Mãe querida, problema de negro acaba se ligando com todos os grandes problemas humanos.
Com todos os absurdos contra a humanidade, com todas as injustiças e opressões.
Mariama, que se acabe, mas se acabe mesmo a maldita fabricação de armas.
O mundo precisa fabricar é Paz.
Basta de injustiça!
Basta de uns sem saber o que fazer com tanta terra e milhões sem um palmo de terra onde morar.
Basta de alguns tendo que vomitar para comer mais e 50 milhões morrendo de fome num só ano.
Basta de uns com empresas se derramando pelo mundo todo e milhões sem um canto onde ganhar o pão de cada dia.
Mariama, Senhora Nossa, Mãe querida, nem precisa ir tão longe, como no teu hino.
Nem precisa que os ricos saiam de mãos vazias e os pobres de mãos cheias.
Nem pobre nem rico.
Nada de escravo de hoje ser senhor de escravo de amanhã.
Basta de escravos.
Um mundo sem senhor e sem escravos.
Um mundo de irmãos.
De irmãos não só de nome e de mentira.
De irmãos de verdade, Mariama.”
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