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Carnavalesco da Águia de Ouro aposta na paz, afoxé e esperança na busca pelo bicampeonato

por Sintonia
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Apesar das incertezas e mudanças na rotina dos preparativos para o Desfile no Anhembi por conta da pandemia do novo coronavírus, o Carnavalesco da atual campeã paulistana não se deixa abalar com os possíveis imprevistos, e juntamente, com toda a Comunidade da Pompeia pretende alcançar o bicampeonato no Carnaval SP 2021.

Foto Capa: Nelson Gariba/ Sintônia de Bambas

Sidney França continua fazendo história no Carnaval Paulistano, o Carnavalesco que conseguiu o primeiro título da Escola de Samba Águia de Ouro no Grupo Especial em 2020, nos convida a colocar em prática os ensinamentos de nossos ancestrais com o Enredo “Afoxé de Oxalá – No ‘Cortejo de Bàbá’ Um Canto de Luz em Tempos de Trevas”.

Aliando conceitos transformadores da história com o olhar voltado ao ser humano e enaltecendo a importância do Carnaval como patrimônio cultural e imaterial do nosso País, Sidney França já deixou sua marca pelas Escolas de Samba Mocidade Alegre, Vila Maria, Gaviões da Fiel e trouxe o título inédito para a Águia de Ouro, em 2020 no Carnaval SP. 

Inspirado pela canção “No Cortejo de Babá, Afoxé de Oxalá” do historiador Luiz Antonio Simas, O Carnavalesco da Águia de Ouro conversou com o Site Sintonia de Bambas sobre os preparativos, inspirações e da importância de fortalecimento do samba como elemento negro através de narrativa visual de justiça e amor que pretende nos fazer refletir que a pacificidade não virá sem boa dose de coragem e luta. 

Você foi campeão pela Águia ao referenciar Paulo Freire e o amor como construção de futuro, e para 2021, já declarou que pretende transmitir uma mensagem a ser decodificada além do espaço-tempo. Que mensagem é essa?

Sidney -Meu trabalho revela uma investigação quase antropológica onde o ser humano surge em primeiro plano até quando, aparentemente, o foco central contextualiza um elemento inanimado – como aconteceu com o “espelho”, em 2010 (Enredo da Mocidade Alegre – Da criação do universo ao sonho eterno do criador … Eu sou espelho e me espelho em quem me criou” – grifo nosso). Trazendo o título da Águia de Ouro no Carnaval 2020 percebe-se com evidente clareza o quanto a afirmação acima se confirma, haja visto que o Enredo tratava-se da força do conhecimento como traço transformador da vida humana em todas as fases de sua existência. E, colocar Paulo Freire como agente disseminador da ideia do amor como edificação de um futuro promissor, atinge – ainda que de maneira subliminar e semiótica – um lugar no sentimento do brasileiro que há muito anda combalido: a esperança. O Desfile pode não ser o mais luxuoso, mas ele entrega a condição do Carnaval como ópio de um povo insatisfeito com a sua realidade. Eis a missão do Carnavalesco: Decodificar através das artes visuais um potencial de entrega do espectador até quando este nem sabe que precisa aliviar a tensão causada pelos conflitos e angústias cotidianos. Quando um desfile de Escola de Samba atinge esse lugar é incrível, e a Águia de Ouro – com sutileza e carisma – atingiu. Sobre a mensagem presente no Enredo para o próximo Carnaval da Agremiação, a mensagem implícita é de um sentimento de alento, amparo e proteção. A realidade em todas a esferas da vida contemporânea – política, trabalho, saúde, educação, etc. – nos traz motivos para desacreditar do homem e suas escolhas. E a mensagem a ser decodificada para este Desfile é de uma força maior que não precisa ser vista e entendida, mas sentida. Unindo esta mensagem ao padrão visual que estou projetando, busco este lugar de arrebatamento daqueles que se permitirem alcançar pelo Afoxé de Oxalá!

Oxalá é paz, amor e fé sendo representado de várias maneiras dentro das religiões afro. Oxalufã, sua versão mais velha é ligada na paciência e na sabedoria do orixá e Oxaguiam é uma figura mais guerreira e traz a coragem para enfrentar os desafios diários. Podemos esperar uma transição dessas qualidades no Desfile da Águia?

Sidney – Considero interessante e, principalmente, muito importante esta pergunta a partir da possibilidade que ela me dá de esclarecer e reafirmar a minha genuína intensão de mostrar a figura de Oxalá como força espiritual essencialmente africana. Através dos ritos e mitos ancestrais deste orixá associado à paz, ao amor e à proteção, busco trazer à cena um olhar contemporâneo da essência herdada por nós brasileiros em séculos de uma diáspora involuntária. Evito a todo custo a visão romantizada muitas vezes embutida nos conceitos de miscigenação e sincretismo religioso. No Desfile não haverá o sincretismo da figura de Oxalá com Jesus Cristo, disseminado na Umbanda, justamente por eu querer evitar um abrandamento de discurso que coloque o tema em posição mais afável aos críticos de Enredos fundamentados no candomblé. Ao contrário, eu quero o enfretamento que causa reflexão, o debate que traz lucidez ao tema e o combate a este olhar incutido pela presença colonizadora-branca-cristã que lança um olhar preconceituoso e deformado a respeito da beleza presente no culto aos orixás. Os avatares de Oxalá – Oxalufã e Oxaguiã – estarão presentes no Desfile de maneira muito forte, coerente e decisiva nos desdobramentos discursivos e até visuais, pois iniciaremos o Desfile apresentando a grandeza da alma, a paciência e a empatia como condição para o entendimento harmônico entre os homens (sabedoria ancestral de Oxalufã), e terminaremos defendendo a necessidade da batalha pelo certo e a força do respeito como condição de igualdade (vitalidade jovial de Oxaguiã). Afinal, a pacificidade não virá sem boa dose de coragem e luta.

A diáspora africana foi a grande responsável por trazer ao Brasil diversos ritmos que caracterizaram a nossa identidade no samba, sendo quase uma tradição trazer uma figura religiosa da umbanda ou do candomblé aos Desfiles das Escolas e Blocos. Você considera esse fenômeno uma marca simbólica de resistência ao apagamento histórico da cultura negra no País?

Sidney – Penso que as Agremiações têm, naturalmente, total liberdade para escolher, ano a ano, uma gama diversa e amplamente variada de temas para os seus Desfiles. Porém, sempre que a escolha se dá pela temática africana ou afro-brasileira – e não me refiro especificamente à vertente exclusivamente religiosa – considero que acontece um reencontro dos fundamentos de uma Escola de Samba com sua natureza rítmico-percussiva, popular, festiva, subversiva e, por fim, negra. A Escola de Samba é um fenômeno negro e, ainda que muitas delas tenha sido fundadas, administradas e/ou frequentadas majoritariamente por corpos brancos, estes devem entender que praticam e celebram uma manifestação negra. Trazendo esse olhar para a tradição de temas advindos da religiosidade da umbanda ou do candomblé nos Desfiles, penso que servem, sim, de resistência ao apagamento da cultura negra no Brasil, ainda mais quando esse apagamento acontece declarada e descaradamente dentro de uma Escola de Samba, agente negro disseminador de cultura popular. Pois quando alguém que se denomina “sambista” rejeita tal temática, esta (a temática) se faz ainda mais necessária na disputa de espaço ali estabelecida. Afinal, o apagamento se manifesta de maneira cruel, covarde e corrosiva ao se apropriar da manifestação que simboliza a resistência ao seu opressor. Ou seja, primeiro o pensamento eurocêntrico domina, depois distorce, por fim elimina. Gosto de pensar e dizer que o samba não é brasileiro. Ele é negro!

O Carnaval continua sendo um pilar de uma ‘brasilidade’ cheia de sincretismo e pautada no social, com tempos ainda mais difíceis para se falar sobre religião e raça, como uma crescente visão de evangelização nos diversos setores e Instituições poderá atingir a forma de se construir um Enredo?

Sidney – Vivemos um momento delicado no que diz respeito à liberdade de pensamento e de expressão. Temos um governo conservador que expõe sem pudor seu desprezo pelas minorias e uma ala mais radical nesta prática impositora, formada pelos cristãos neopentecostais, que radicalizam a ponto de militar declaradamente a favor da destruição de tudo o que não se enquadre na sua visão de mundo. Porém, não considero que o crescente movimento de evangelização interfira na maneira de se construir um Enredo, até porque quem pratica a cultura do samba e do Carnaval, consequentemente não compactua com a visão rasa e cerceadora do cristianismo radical. Penso eu que as reais influências aos Enredos neste sentido sejam daqueles que fazem parte do Carnaval e trazem consigo um olhar preconceituoso a respeito da africanidade intrínseca ao samba e, numa falsa afirmação de livre pensamento, acabam minando as heranças negras de suas práticas – exemplo disso são as Agremiações onde seus mandatários afirmam sem pudor algum que “Carnaval sobre orixá aqui não”. Em resumo, prefiro lidar com cristãos radicais que expõe sua contrariedade a respeito da cultura negra do que conviver com “sambistas” que refutam as bases da cultura que ele – por ignorância ou desprezo – renega, corroendo por dentro a ancestralidade da cultura do samba e do Carnaval.

Como você vem mobilizando os trabalhos na Escola, diante de uma agenda sendo alterada e sem uma diretriz de segurança definida para retomada da rotina de Ensaios e Desfiles de forma ‘tradicional’ no Anhembi? Isso terá um efeito sobre a estrutura dos carros alegóricos e alas, e principalmente, na mensagem do Enredo?

Sidney – Tenho uma visão bastante pragmática de que não podemos permitir que nossa capacidade de realização seja afetada por esta pandemia. Ela passará, como tudo na vida passa, e nossas convicções dos valores básicos que profissionalmente nos norteiam – eficiência, qualidade, pontualidade, comprometimento, etc. – permanecerão intactos. Sendo assim, podemos alterar rotinas e praxes cotidianos, mas o projeto de um Carnaval é quase messiânico e espiritual, ao passo que o colocamos até maior que nós na missão de propor e realizar. Em resumo, tenho colocado as diretrizes deste próximo Desfile acima de quaisquer fatores considerados por mim como momentâneos no enfrentamento da pandemia. Por isso, não está impactando na mensagem do Enredo, que segue sua linha discursiva inalterada. Porém, acredito que refletirá na materialização das alegorias e faz fantasias por prováveis reduções das condições financeiras, logísticas ou estruturais como consequência do COVID-19.

Como resumir o Enredo 2021 da Águia de Ouro?

Sidney – O Enredo da Águia de Ouro para o próximo Carnaval se fundamenta na constatação de que o mundo vive tempos sombrios e somente a grandeza de Oxalá – em sua infinita sabedoria – poderá nos servir de alento e esteio. A riqueza contida na narrativa do Enredo e, consequentemente, a ser evidenciada nas suas soluções plásticas, sustenta o argumento de que tão importante quanto o objetivo a ser alcançado (ter a paz) é o caminho a percorrer (praticar a paz). E aqui o termo “praticar” é essencial para assimilar que a paz de Oxalá se dá pela evocação, cânticos, oferendas e festejos ao orixá. Ou seja, não adianta querer a paz de Oxalá sem conhecer, valorizar e respeitar os ritos praticados e os mitos compartilhados pela oralidade no candomblé. O “Afoxé de Oxalá” é um chamado a se permitir conhecer a construção da paz percorrendo o caminho ensinado pelos orixás, onde a integração com as forças da natureza e o encantamento pela sabedoria ancestral que regem o mistério da vida.

O Carnaval surgiu como resistência e fortalecimento das relações sociais, políticas e culturais dos negros no Brasil e através dos seus Enredos traz consigo a herança da oralidade passada pela ancestralidade. Com forte influência das religiões de matriz africana, as histórias contadas na Avenida recebem as bênçãos e mostram que  as adversidades podem ser vencidas com respeito por todos, e principalmente, às forças da natureza. 

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